terça-feira, 22 de setembro de 2009

Vilanias

É possível personificar o mal? Fazê-lo assumir uma forma humana, única, situá-lo em apenas uma pessoa? As questões poderiam ser apenas de uma discussão de cunho religioso mas, na verdade, estiveram recentmente inseridas nas arguições do campo jornalístico.

A semana teve uma cobertura em Salvador que ficou entalada em minha garganta todos estes dias. Um velho assunto infelizmente queridinho da mídia que foi, naturalmente, capa dos poucos jornais da capital: retomo aqui o caso do estudante de medicina que foi preso por pedofilia em Abrantes, região metropolitana de Salvador, destacando como um veículo já conhecido deste blog consegue ultrapassar os limites do noticiável e adentrar no grotesco.

Na terça-feira (15), o A Tarde e o Correio* traziam fotos de Diogo Nogueira, 22, estudante do curso de Medicina da UFBA, preso em flagrante com três crianças em sua casa de praia em Abrantes. No momento da prisão ele jogava videogame com os meninos, mas a acusação foi baseada em uma denúncia do pai de uma das vítimas e de materias encontrados em seu computador. E em depoimento à polícia ele confessou ter abusado sexualmente de dez crianças, entre elas alguns seriam seus irmãos menores.

Detalhes sórdios e signos

No computador foram encontrados arquivos com relatos textuais de alguns dos abusos, além de fotos dos crimes. O estudante afirmou que o material era utilizado para lembrar do que tinha feito e, através das imagens e textos, tentar não voltar a repetir os atos. O A Tarde recebeu o santo do bom senso e se limitou a dizer que o conteúdo era impublicável. Parou por aí e eu segmento à matéria, falando sobre a investiação do caso, materiais apreendidos e sobre a terapia que Diogo estava fazendo para se tratar do problema. O jornal só escorregou na banana ao trazer um número de vítimas bem maior que o Correio* (a publicação de Simões falou que eram 17, enquanto o de ACM Júnior disse dez) sem explicar de onde veio a informação. O Correio* pelo menos aspeou o número ao jovem.

E o jornal da Rede Bahia, seguindo a linha editorial que adotou recentemente, desceu o nível: descreveu as imagens em detalhes, citando uma variedade de formas de abuso que nada acrescentam a matéria, ao fato jornalístico. São detalhes de um crime que, por si só, já choca a sociedade brasileira. As informações foram usadas a serviço do infoteinment. E nisso se estruturou toda a cobertura do veículo.




A capa do dia foi um prato cheio tanto para preconceitos quanto para críticas. Estarrecedora, horrorosa do ponto de vista jornalístico. O fundo vermelho traz a cor-símbolo do sangue, do escatológico, do violento. E a manchete, então... "A FACE DO MAL", em negrito, corpo gigante e capitulado. Abaixo, uma foto em close do estudante. Em comportamento infelizmente típico de muitos veículos, o Correio* saiu da posição de relator dos fatos e tomou para si a função de juiz -- ou, mais grave, de um deus. Personificou, em um jovem estudante acusado de pedofilia, o mal. Pronto, não importam as circunstâncias: ele teria cometido o crime por pural maldade, cueldade e más inclinações de caráter. Um safado, pervertido. Mal em sua essência e forma humana.


Construção
O Correio* utilizou todos estes detalhes e signos visuais/textuais para constriur uma imagem do acusado, ou melhor, reforçar a sua posição de vilão já colocada em virtude do crime que cometeu -- elementar: mídia nenhuma vai considerar vítima ou moçinho um acusado de pedofilia. Mas o que se tratou de fazer foi usar estes dados para criar um criminoso que seria o alvo perfeito de pré-julgamentos externos e que deve chocar a todos mais que os outros pedófilos: um jovem de classe média, olhos verdes, calmo, inteligente, doce, estudante exemplar, acima de qualquer suspeita segundo seus amigos e colegas, mas que seria um pervertido por dentro. Um garoto de duas faces, talvez.

Diogo afirmou estar em tratamento contra o problema há cerca de dois anos -- os pais, inclusive, sabiam de suas inclnações. Alegou ser uma pessoa doente e que tinha consciência de seus atos, mas que desconhecia sua origem, suas causas; disse que fez medicina para tentar entender o que passava em sua mente e que queria que o que aconteceu com ele ajudasse a tornar a pedofilia um assunto menos negligenciado, porque "ninguém se interessa em pesquisar a origem de um monstro."

O próprio perfil de Diogo enquanto acusado já é peculiar. Mas, com estas declarações, Diogo deixaria em definitivo de ser um "pedófilo comum" do ponto de vista da cobertura jornalística. Aparentou uma lucidez pouco mostrada -- ou buscada -- pelas matérias, que se limitavam a enquadrar os presos por este tipo de crime como pervertidos e cruéis, pais ignorantes que abusavam de filhas/filhos e outras crianças por deliberado prazer e "safadeza". O Correio* fez uma cobertura do caso maior que os outros jornais e obteve estas declarações, inclusive, em uma entrevista com o jovem que ganhou espaço separado na reportagem. Mas pouco proveito tirou disso. Positivo, pelo menos.

O posicionamento de um acusado de pedofilia como vilão parte de um senso comum sobre a óbvia carga negativa deste tipo de crime. Mas não se pode utilizar este elemento como muleta para uma cobertura torta e que ignora pessoas a exemplos de amigos, colegas e parentes que não conheciam este comportamento do garoto, e que agora recebem esta enxurrada estarrecedora de informações que tangem o sórdido. Deixa-se de lado, também, o próprio protagonista da história. É valido questonar: todos os pedófilos podem ser mesmo colocados em um mesmo caldeirão, considerados "farinha do mesmo saco", gente de uma mesma laia, vilões e pervertidos?

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